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Crianças indígenas em atividade numa escola ao ar livre em Maricá, no Estado do Rio: dificuldade de acesso, carência de profissionais e falta de material didático comprometem parcela significativa do ensino público brasilieiro. AP Photo/Bruna Prado

Escolas do campo são negligenciadas e vivem risco de fechamento

O Brasil possui 5.565 municípios em todo o seu território. Em 4.426 deles, há alunos matriculados em zonas rurais, estudando nas escolas do campo.

Trata-se de um conjunto de modelos educacionais que envolve escolas das águas (nas regiões ribeirinhas), escolas quilombolas, escolas indígenas, escolas dos assentamentos, escolas das florestas e escolas em grandes fazendas de agropecuária.

Suas características mais marcantes são:

  • Serem escolas pequenas, porque atendem a poucos alunos;
  • Serem próximas das moradias dos alunos; com poucos professores
  • Não contarem com os profissionais de apoio com que contam as escolas das cidades, como coordenadores pedagógicos, cozinheiras e cozinheiros, serviços de saúde e outros.

Essas escolas estão em localidades onde há diversidade socioambiental e organizacional, abrigando crianças e jovens ribeirinhos, sertanejos, indígenas, caiçaras, quilombolas e moradores da área rural sem rótulos. Para todas essas populações, outros serviços públicos são praticamente inacessíveis.

De acordo com os dados do Censo Escolar da Educação Básica 2023/INEP, “as matrículas da educação básica são encontradas majoritariamente na área urbana (88,8%)”. O que significa que 11,2% das matrículas estão em área rural, dentro da variedade de formatos que citamos acima. Apesar de sua relevância, a realidade desses centros de ensino é excludente e perversa.

Realidade dura e muito pouco visível

É exatamente isso que eu tenho testemunhado nas viagens que faço mensalmente pelo Brasil, participando de atividades de formação de professores e gestores. Faço isso há mais de trinta anos, de Norte a Sul do país. Não ouvi falar pelas mídias ou teses. Eu estou lá, mesmo por breves períodos. Converso com os educadores, visito escolas, o que me possibilita conhecer não só essas realidades como as dores de todos os envolvidos.

Em especial sobre as escolas do campo, desenvolvo há três anos um projeto de assessoria pedagógica para uma escola do campo, no Pantanal sul-matogrossense.

Também tive oportunidade de acompanhar e fazer a formação de professores e coordenadores das escolas do campo na mesma região para a rede municipal, assim como tive a oportunidade de conhecer e ainda acompanhar escolas das águas.

Discordo radicalmente do discurso do “melhor isso do que nada”. Todas as crianças e jovens brasileiros têm o direito de receber, em igualdade de condições, uma educação de qualidade. Isso está assegurado pela Constituição brasileira de 1988, com o respeito à diversidade das realidades, porém sempre combatendo a desigualdade.

Constatei no passado a mesma realidade que observo no presente:

  • Os espaços físicos são, em sua maioria, precários.
  • O acompanhamento pedagógico que essas escolas recebem das secretarias de educação locais é esporádico ou inexiste.
  • Os currículos são urbanos, em total desrespeito à diversidade, e não há materiais pedagógicos adequados à realidade do campo.
  • Os livros didáticos adotados são escritos para as escolas da cidade.

Classes multisseriadas

Também os professores não possuem uma licenciatura adequada. Muitos conseguiram sua graduação em cursos de EAD (Educação à Distância). Quanto à organização, embora algumas escolas sejam seriadas, é grande o número de classes multisseriadas.

Classes multisseriadas são aquelas que “têm alunos de diferentes séries e níveis em uma mesma sala de aula, independentemente do número de professores responsáveis pela classe”, conforme definição do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

O fato mais grave é que as classes multisseriadas são vistas, de modo geral, como algo inferior. São adotadas nas escolas do campo por questões contingenciais, não havendo formação docente específica para preparar e acompanhar suas práticas pedagógicas e nem suporte didático.

Os professores que trabalham nessas escolas são identificados como desqualificados, tendo em vista que muitos vão trabalhar em áreas rurais porque não conseguiram os pontos necessários para ficarem nas escolas da cidade.

Fora do Brasil, as escolas multisseriadas são entendidas como um espaço de inovação, como se vê na Finlândia, Noruega, Irlanda, Espanha, Chile, Colômbia. Rompem com a visão homogeneizadora que separa crianças e jovens por idade, com rigidez do tempo escolar e fragmentação de conteúdos em séries anuais, um modelo fabril de educação vigente desde o século XIX.

A escola multisseriada traz como desafio transformar a precarização da sua realidade em estratégias de inovação educacional. E o Brasil perde esta oportunidade, por não respeitar a necessidade de reconhecer a diversidade do país como um patrimônio nacional e fazendo dela uma fonte de desigualdades.

Leis e diretrizes estão sendo ignoradas

Quando se fala de educação, mais especificamente aquela que acontece nas escolas, o que é visto como identidade é o modelo urbano, a escola das cidades. Essa é a visão que prevalece, ainda que o país disponha há quase três décadas de um conjunto bem formulado de diretrizes e leis que orientam a adaptação dos conteúdos e metodologias às peculiaridades de cada região.

Somente em 1996, com a homologação da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9394/1996), as escolas rurais ganharam alguma visibilidade e passaram a ser conhecidas como escolas escolas do campo. A LDB determina que os sistemas de ensino devem promover as adaptações necessárias dos conteúdos curriculares às peculiaridades da vida rural e de cada região e a adoção de metodologias apropriadas. Recomenda também a adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas, bem como à natureza do trabalho na zona rural.

Quanto à identidade dessas escolas, uma resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE), publicada em 2002, estabeleceu que ela é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se nos saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva, na rede de ciência e tecnologia disponível e na defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à melhora da qualidade de vida.

Mais de uma década depois, a aprovação da lei que criou o Plano Nacional de Educação 2014 – 2024 (PNE, nº 13.005/2014) reforçou a necessidade de estados e municípios considerarem as necessidades específicas das populações do campo e das comunidades indígenas e quilombolas em seus planos para a educação estadual e municipal, assegurando a equidade educacional e a diversidade cultural.

Deslocamento forçado

Apesar da legislação garantida e de reunir um número significativo de estudantes, a escola do campo continua fora dos radares dos planejadores e entes públicos. Salvo muito raras exceções, sobrevive à deriva dos governos, marginalizada na educação estadual e municipal, entregue ao desempenho individual dos professores.

A soma dessas circunstâncias retira dos estudantes o acesso à aprendizagem, colocando os moradores do campo em posições de inferioridade e de discriminação social.

É uma situação que se perpetua desde o início da era industrial, quando a cidade se torna o centro, e tudo aquilo que é de fora da cidade passa a ter uma conotação de inferioridade, de atraso.

No Brasil, onde a industrialização ganhou força mais tardiamente, na década de 1930, o modelo de centralidade produção-reprodução desse processo histórico gerou a desumanização do olhar para os povos do campo. Começa aí um simbolismo de exclusão no qual tudo o que se conseguiu depois tem sido fruto de luta dos movimentos sociais.

Como se não fosse suficientemente ameaçador o esquecimento das escolas do campo, existe hoje uma tendência no país de deslocar os estudantes que residem em áreas rurais para estudar nas cidades.

Trocando escolas por ônibus

Assim, crianças e jovens têm que acordar de madrugada, percorrer longas distâncias para estudar fora de seus territórios, em lugares sem vínculos e nenhum acolhimento, sendo discriminados nas escolas das cidades.

Em diversos locais, essas escolas enfrentam a ameaça do seu fechamento. . São posições governamentais tomadas à revelia da população usuária e que já motivam decisões judiciais.

Isso vai na contramão das teorias educacionais que atestam que a permanência das crianças e jovens no seu território para estudar é absolutamente fundamental na construção de suas identidades.

Fato é que a educação no Brasil se torna, cada vez mais, motivo de preocupação em função dos seus problemas crônicos, mesmo considerando as mudanças de políticas governamentais e de governos.

Os otimistas afirmam que o quadro vem melhorando, mesmo que lentamente. Aqueles que atuam diretamente nas escolas sabem que o “lentamente” não serve de consolo frente a toda série de prejuízos que a falta de políticas adequadas acarreta para os estudantes.

São gerações que vem sendo sistematicamente deixadas de lado, apagadas ou prejudicadas, apesar da compreensão do papel social e político da educação como o campo espaço democrático mais importante de socialização dos conhecimentos reunidos pela humanidade e como condição básica para o desenvolvimento do país.

Temos um longo caminho a ser percorrido para a construção de uma educação socialmente e ele passa pela valorização das escolas do campo. É emergencial dar visibilidade a essas escolas, porque são elas que atendem às populações mais vulneráveis do país.

Precisamos de políticas públicas educacionais inovadoras para este segmento, mas também de mobilização social em torno do direito à educação de qualidade para todos, valorizando a educação do campo na sua diversidade de contextos.

Falta-nos também a implementação de pedagogias específicas que contemplem a diversidade de realidades e sejam capazes de articular saberes locais com os conhecimentos científicos e culturais. Enfim, precisamos ter consciência que o direito à educação é mais do que a escolarização. É o direito que as populações do campo têm de exercerem a sua humanidade plena.

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