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Protesto de estudantes em prol da educação pública na Avenida Paulista, durante o governo Bolsonaro: disseminar percepção de que Brasil desperdiça dinheiro com ensino público é interesse do lobby da privatização do ensino. AP Photo/Andre Penner

Mitos da educação: Comparar percentuais de PIB para afirmar que Brasil investe demais em ensino público é um erro

Ao longo do tempo, por diversas razões, em geral relacionadas à disputa pela destinação dos recursos financeiros disponíveis para desenvolver ações que projetem um futuro brasileiro menos desigual, foram realizadas análises de forma superficial que foram se cristalizando como verdadeiros mitos na sociedade. A partir de hoje, o The Conversation Brasil começa a publicar a série de artigos “Mitos da educação”, onde o Mestre em Física e doutor em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG) Nelson Cardoso Amaral examina em profundidade diversas crenças equivocadas sobre setor existentes no país. Neste primeiro artigo, Nelson contesta o mito de que o Brasil, comparado a outras nações, gasta dinheiro demais com ensino público.


É usual no estudo de políticas públicas a utilização de percentuais em relação aos Produtos Internos Brutos (PIBs) dos países quando se apura o montante de recursos aplicados no desenvolvimento de ações em um determinado setor da sociedade. A utilização desse indicador precisa, entretanto, ser feita com muita cautela.

A informação de que o Brasil já aplica muito dinheiro em educação é difundida a partir de organismos multilaterais como o Banco Mundial (BM) quando afirma que no Brasil, “em 2014, após uma década de rápido crescimento, as despesas com educação chegaram a 6% do PIB. Já em 2010, os gastos com educação no Brasil eram superiores à média dos países da OCDE (5,5%), do BRICS (5,1%) e da América Latina (4,6%)”.

Com essa análise o BM comete um erro conceitual (deliberado?) ao misturar um número que expressa os recursos gastos em educação como um percentual do PIB, com um outro número que é o total de recursos financeiros “gastos com educação”.

O primeiro, como percentual do PIB, apenas expressa que esforço está sendo realizado pelo país para tentar resolver os seus problemas educacionais frente à sua riqueza expressa pelo PIB. O segundo, o valor financeiro total aplicado em educação é o que realmente importa, pois significa pagar salários, formar professores, montar a estrutura física das escolas, equipar laboratórios, estruturar atividades de cultura, propiciar alimentação aos estudantes etc.

De posse dessas informações do Banco Mundial uma pessoa menos atenta pode concluir que o Brasil aplica em educação um total de recursos por estudante, em reais, muito maior do que os países da OCDE, o que, convenhamos, é um completo absurdo.

Um país que utilizou o equivalente a 4,9% de seu PIB de recursos em educação apresenta melhores condições para a promoção do processo educacional que outro país que utilizou o equivalente a 3,4% do seu PIB? O que é verdadeiro é que o país que aplicou o equivalente a 4,9% do PIB realiza um esforço maior que aquele que aplica o equivalente a 3,4% do seu PIB. O que se pode dizer sobre o volume de recursos aplicados em educação?

Para responder a esta questão é necessário utilizar duas outras informações: o valor do PIB do país e o tamanho da população a ser atendida, o que pode ser expresso, por exemplo, pela quantidade de pessoas do país que está com idades de 0 a 24 anos, que são as idades recomendadas para que as crianças e jovens participem do processo educacional em seus níveis, etapas e modalidades.

A Colômbia aplicou em 2020 recursos públicos equivalentes a 4,9% do PIB em educação e o Japão 3,4% do PIB e são os países do exemplo apresentado anteriormente. Se não examinarmos outras informações passa-se a impressão que a Colômbia propicia melhores condições financeiras para o setor educacional que o Japão, o que, convenhamos, não é compatível com nossas percepções.

A tabela 01 apresenta a conjunção dos três indicadores que precisam ser observados simultaneamente para uma análise consistente e completa do indicador como percentual do PIB, para a Colômbia, o Japão e para o Brasil. Os dados internacionais serão apresentados em dólares americanos, convertidos para a paridade de poder de compra (US$-PPC), que equalizam o poder de compra das diversas moedas dos diferentes países.

Fonte: Dados da Central Intelligence Agency (https://www.cia.gov/the-world-factbook) e tabela estruturada para este texto. Author provided (no reuse)

O Japão aplicou o equivalente a US$-PPC 6.814,53 por pessoa em idade educacional e a Colômbia, o equivalente a US$-PPC 1.926,71 e, é claro, o Japão é que propicia melhores condições financeiras para o setor educacional ao aplicar mais de três vezes recursos por pessoa em idade educacional, que a Colômbia.

Apesar da Colômbia aplicar um percentual em relação ao PIB maior que o Japão, o seu PIB é de US$-PPC 754,6 bilhões e sua população em idade educacional de 25.575.349 pessoas, comparado aos US$-PPC 5.126,00 bilhões do PIB do Japão – 6,8 vezes maior que o colombiano – e uma população em idade educacional de 19.202.020 pessoas, um pouco menor que a do Japão. O Brasil aplicou o equivalente a US$-PPC 2.314,00 por pessoa de 0 a 24 anos, valor muito menor que o do Japão, apesar de aplicar como percentual do PIB um valor maior!

O Plano Nacional de Educação (PNE) para o período 2014-2024 estabeleceu em sua Meta 20 que os valores financeiros aplicados em educação brasileira deveriam ser elevados até atingir o equivalente a 10% do PIB em 2024, o que, pode-se afirmar, será inatingível em tão pouco tempo, considerando que em 2020 o valor divulgado pelo INEP foi de 5,4%.

Note-se que mesmo atingindo o patamar de 10% em relação ao PIB o Brasil estaria aplicando US$-PPC 4.150,00 por pessoa em idade educacional, o que ainda seria um valor que não alcançaria nem a metade do valor médio aplicado pelos países membros da OCDE, que foi de US$-PPC 8.933,00.

Com todas essas evidências, pode-se perguntar: o que sustenta o mito de que o Brasil já aplica muito dinheiro em educação?

Em primeiro lugar lança-se mão da dificuldade que a população possui para compreender a diferença existente entre recursos aplicados como percentual do PIB e o valor aplicado por pessoa que estuda, que é o que realmente interessa para elevar os salários dos professores, melhorar as condições materiais das escolas, promover a inclusão de pessoas etc.

Em segundo lugar, na medida em que carecem de análises utilizando de dados objetivos, de comprovação científica, que decorrem do raciocínio lógico, os que propagam e disseminam esse mito o fazem como mantras intensamente divulgados que possuem o objetivo primordial de enfraquecer a luta pelo ensino público no Brasil. Pois o setor representa um componente importante na destinação dos recursos arrecadados da população por meio de impostos, taxas e contribuições, recursos que são desejados pelos setores da sociedade que defendem a privatização dessa política social.

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