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Diante da crise climática, o debate deveria ser o de desocupação e recuperação dos Terrenos de Marinha, considerando-os como ativos nacionais para a estabilidade do litoral e para a conservação da biodiversidade, sobretudo nas áreas onde os impactos da erosão costeira são recorrentes. Foto: Felipe Guandelini / Unsplash

PEC no Senado acaba com Terrenos de Marinha e abre caminho para a privatização de áreas do litoral

O litoral brasileiro é extenso e diverso. Considerando as praias, os estuários, os banhados, as baías e enseadas, os costões rochosos, manguezais e marismas, as lagunas, as ilhas continentais e oceânicas, as reentrâncias de todos os segmentos onde há influência mensurável das águas oceânicas, são mais de 20.000 km de extensão. Margeando esse litoral estão os chamados Terrenos de Marinha. Embora tenham esse nome, não são terrenos da Marinha, mas sim da União.

Os Terrenos de Marinha são uma herança colonial, regulamentados pelo Decreto-Lei 9.760/1946. São bens patrimoniais imóveis da União, delimitados a partir da linha de preamar (maré alta) média, até uma distância de 33 metros costa adentro. Quando ocorre alguma aquisição de território nesta faixa, seja por qual motivo for, ele passa a ser definido como “Acrescido de Marinha”.

Existem algumas dificuldades na demarcação precisa desses terrenos e seus acrescidos. Isso ocorre sobretudo em razão das dimensões e do litoral serem ambientes dinâmicos, que ora crescem em direção ao mar, ora recuam em direção ao continente. As taxas anuais de erosão são extremas, superiores a cinco metros por ano, em cerca de 11% do litoral brasileiro. Fora isso, diante da ampla extensão do litoral brasileiro, há dificuldades óbvias de fiscalização e de ordenamento dos usos, da ocupação e da integridade deste patrimônio nacional.

A União permite a ocupação dos Terrenos de Marinha e seus acrescidos. De acordo com a Lei 6.936/98, é permitida a cessão para que Estados e municípios usufruam destes terrenos. Também é permitida a concessão para fins de moradia e a possibilidade de destinação a pessoas jurídicas e físicas, de forma onerosa ou não, de acordo com a vasta regulamentação atinente a matéria.

A ocupação privada, como casas e condomínios, plantas industriais, portos, aeroportos e marinas, são cadastradas junto à SPU (Secretaria de Patrimônio da União). Tais concessões são feitas por meio do pagamento de Foro anual. Sempre que estes imóveis são negociados ainda há o pagamento de Laudêmio.

A estes ocupantes cadastrados chama-se de foreiros. Hoje são um pouco mais de 550 mil cadastrados, gerando receitas superiores a 195 bilhões de reais aos cofres públicos. Há também muitos ocupantes não cadastrados que invadiram esses terrenos e não pagam por isso. Estima-se que sejam mais de um milhão. Alguns por nítida necessidade, outros não. Outros ainda requerem o usucapião sobre esses bens, mas isso é vedado pelo artigo 102 do Código Civil.

São antigos os esforços e movimentos para acabar com as proteções a este segmento valioso do território nacional. Recentemente, a PEC 39/2011 foi criada com o intuito de revogar o inciso VII do Art. 20 da Constituição Federal e o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A ideia é extinguir o instituto do Terreno de Marinha e seus acrescidos e dispor sobre a propriedade desses imóveis.

Essa discussão ocorreu durante anos até finalmente ser aprovada na Câmara Federal em 2022. Agora, a mesma proposição prospera no Senado Federal, na forma da PEC 03/2022, com os objetivos claros de passar (com ônus em alguns casos e sem ônus em outros) tais Terrenos de Marinha e seus acrescidos ao domínio pleno dos Estados, Municípios e ocupantes particulares (foreiros e não foreiros). Segundo a proposta, caberá à União apenas permanecer com aqueles terrenos utilizados pelo serviço público federal, inclusive os destinados à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos e a unidades ambientais federais, e as áreas não ocupadas.

Existem questões variadas, complexas e polêmicas em torno desse tema. Opto aqui por chamar a atenção especificamente para as praias, um patrimônio nacional.

Praias são bens públicos, de livre acesso

Conforme foi definido pelo Art. 10 da Lei 7.661/88, as praias são bens públicos de uso comum. Está assegurado, sempre, o livre e franco acesso a elas e ao mar, ressalvados os trechos considerados de interesse da segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica. O mesmo artigo entende como praias a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico (tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos), até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.

Ocorre que esse limite superior que a lei define para as praias é, geralmente, o limite no qual há o alcance máximo das marés e, em muitos casos, onde se iniciam a linha que demarca os Terrenos de Marinha. Esse é também o limite no qual, em termos ecossistêmicos, começa a chamada retropraia ou pós-praia (ou ainda zona supralitoral ou supramarés). Estas são, resumidamente, os segmentos superiores das praias, onde se desenvolvem dunas frontais e a vegetação de restinga. São segmentos vitais para a sua manutenção e adaptação frente aos impactos de tempestades cada vez mais fortes no contexto das mudanças climáticas.

Em litorais urbanizados, esses terrenos já estão em sua maioria ocupados e sobrepostos por calçadões, parques, ciclovias, quiosques, rodovias e avenidas, casas, edifícios, obras de proteção costeira e etc. Há pouco espaço para a manutenção do sistema praial, que vem sendo efetivamente estrangulado. Por um lado, pela urbanização que avança sobre as praias; por outro, pela elevação relativa do nível do mar e pelos impactos de eventos de ressacas do mar que a erodem.

Em litorais pouco ou não urbanizados, as áreas ainda não degradadas são ‘protegidas’ pelo estatuto das áreas de preservação permanente (APPs), especificamente restingas e dunas vegetadas (ou dunas fixas), que são pouco respeitadas e protegidas no Brasil. Em tais áreas, já se observa uma corrida para a ocupação (grilagem) diante das expectativas positivas que a PEC 39/2011 criou aos que pretendem se apropriar dessas terras.

Debate invertido

Por fim, diante da imperiosa crise climática atual, o debate necessário sobre os Terrenos de Marinha e seus acrescidos parece invertido. No contexto do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, o debate atual deveria ser o de desocupação, recuperação, restauração e refuncionalização de boa parte desses terrenos e seus acrescidos. Deveriam ser considerados como ativos nacionais para a estabilidade do litoral e para a conservação da biodiversidade, sobretudo nas áreas onde os impactos da erosão costeira e das inundações marinhas se fazem prognosticados, registrados e/ou recorrentes.

O nível do mar está comprovadamente em elevação. As ondas de calor estão se tornando habituais e as tempestades no oceano estão mais frequentes e intensas. Os ecossistemas associados aos Terrenos de Marinha oferecem serviços essenciais para a proteção costeira, para a captação, escoamento e abastecimento de água. Além disso, são fundamentais para a conservação da biodiversidade, para a adaptação das comunidades litorâneas, para a fixação de carbono, para a regulação climática e para que possamos amenizar impactos negativos dos novos desastres naturais na zona costeira do país.

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