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Pesquisador no Laboratório de Tecnologia Imunológica da Fundação Bio-Manguinhos: uso de moléculas de mRNA permitiu o desenvolvimento de uma plataforma poderosa e versátil para produção de novas vacinas e remédios. Biomanguinhos/Divulgação

Projeto envolvendo tecnologia vencedora do Nobel põe Brasil na busca por equidade global na distribuição de vacinas

A pandemia de COVID-19 deixou clara a desigualdade na distribuição de vacinas e insumos médicos entre os diversos países do mundo. Enquanto as nações mais ricas tiveram suas necessidades priorizadas, muito devido à concentração de empresas com capacidade de desenvolvimento e fabricação destes produtos em seu território, países de baixa e média renda ficaram à margem, aguardando uma oportunidade de obter suas primeiras doses de vacina.

Diante disso, percebeu-se a necessidade de maior cooperação internacional para aumentar as capacidades de inovação e produção de insumos médicos e vacinas nos países do Sul Global. Para enfrentar este problema, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou em abril de 2021 uma chamada para que países já detentores de tecnologias envolvendo o mecanismo de RNA mensageiro (mRNA) e fabricantes regionais de produtos médicos e biotecnológicos se juntassem em uma iniciativa de democratização do uso da plataforma de mRNA em países de baixa e média renda, de forma a aumentar a capacidade produtiva local e promover a equidade na sua distribuição. As tecnologias envolvendo o mecanismo de mRNA foram usadas, por exemplo, nas vacinas contra a COVID-19 da Pfizer aplicadas no Brasil, e cujo desenvolvimento rendeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2023. Em setembro de 2021, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi um dos selecionados pela OMS para este trabalho na América Latina.

Uma história de amizade

A história desta escolha também é uma história de amizade. Eu e a Dra. Ana Paula Dinis Ano Bom nos conhecemos ainda na faculdade, quando cursávamos Biomedicina na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Depois da faculdade, trilhamos caminhos diferentes na nossa formação de pós-graduação. Eu me especializei em Imunologia, estudando as respostas imunes para doenças virais e vacinas na Fiocruz. Já Ana Paula foi estudar bioquímica de proteínas relacionadas aos mecanismos que levam ao desenvolvimento de tumores malignos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Mesmo seguindo caminhos diversos, mantivemos nossa amizade nesse período, e em 2006 nos reencontramos em Bio-Manguinhos como profissionais, começando a atuar juntas em algumas iniciativas. Em 2018, quando chefiávamos cada uma um laboratório, decidimos juntar nossas experiências e iniciarmos uma jornada para o desenvolvimento de vacinas terapêuticas para o tratamento de tumores utilizando RNA mensageiro. Naquela época já estávamos seguindo de perto a tecnologia que deu aos pesquisadores Katalin Karikó e Drew Weissman o Nobel de Medicina deste ano.

Então veio a pandemia, e vimos que poderíamos adaptar nosso projeto de vacinas antitumorais para desenvolver uma vacina mRNA contra a COVID-19. E aqui chamo a atenção para uma das grandes vantagens desta tecnologia: sua versatilidade. Tendo em mãos o molde das vacinas contra células cancerosas, feito de DNA, pudemos mudar rapidamente a sequência das proteínas tumorais para a da proteína de interesse do vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19. Quando o RNA mensageiro resultante desta modificação ficou pronto, rapidamente o testamos em animais, e obtivemos os primeiros resultados positivos.

Ao ficarmos sabendo da chamada promovida pela OMS, nossos olhos brilharam. Queríamos dividir nossos avanços com outros países em desenvolvimento, e foi assim resolvemos responder ao edital. E, para nossa alegria, Bio-Manguinhos, pela qualidade do nosso projeto, foi selecionado para ser um dos centros para o desenvolvimento e instalação desta iniciativa.

Desde então, eu e Ana Paula, nossas equipes e todos os especialistas das mais diversas áreas de Bio-Manguinhos temos trabalhado incessantemente para chegar ao registro da primeira vacina mRNA totalmente desenvolvida no Brasil. Desenhamos uma construção de RNA mensageiro que contém elementos diferentes daqueles usados nas vacinas atuais, e que nos possibilitarão obter uma patente para proteger a tecnologia nacional.

Até o momento já testamos mais de 20 combinações de construções de mRNA com nanopartículas lipídicas (cápsulas de gorduras que funcionam como o sistema de entrega do RNA mensageiro às células dos vacinados, evitando que seja degradado pelo organismo ou atacado pelas suas células imunes) totalizando sete ensaios em animais, até selecionarmos a candidata ideal para seguir nos testes. Com ela, realizamos mais dois ensaios, que comprovaram que nossa vacina é capaz de gerar a resposta imune adequada para proteger os animais contra o SARS-CoV-2, e sua sobrevivência em desafio letal.

Nosso próximo desafio é realizar os testes toxicológicos em animais, que irão comprovar se nossa vacina é segura para ser aplicada em humanos, o que deve acontecer nos próximos meses.

Interesse e versatilidade

A plataforma mRNA desperta enorme interesse por representar uma revolução não só em vacinas preventivas, mas na obtenção de outros produtos biotecnológicos no futuro. Sendo uma plataforma versátil, sua implantação, desde a concepção do produto na pesquisa, até sua produção industrial em Bio-Manguinhos/Fiocruz, será de grande importância para aumentar a autonomia brasileira no desenvolvimento e produção local de vacinas e biofármacos para nosso Sistema Único de Saúde (SUS), ampliando o acesso da população brasileira e da América Latina a estes produtos, e como forma de preparação para novas emergências sanitárias.

Além disso, a plataforma mRNA pode oferecer soluções para doenças crônicas como o câncer, que ainda apresenta grandes desafios para a saúde pública brasileira e mundial. Por fim, nosso desenvolvimento de uma vacina mRNA, liderado por uma equipe brasileira e utilizando tecnologia totalmente nacional, será um marco para a biotecnologia em nosso país.

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